quarta-feira, 4 de novembro de 2009

CRIAR

O texto abaixo foi escrito pelo amigo Franzé, um artista fabuloso, criador de peças fantásticas, que em breve terei a satisfação de mostrar aqui. Franzé foi amigo de meu pai e me "descobriu" em Cabo Frio. Por incrível que pareça somos vizinhos e não sabíamos.
 

No trato do processo criativo, mormente nas chamadas artes visuais, duas posições predominam: de um lado a apolínea, regida pelo desejo de ordem, clareza, harmonia e de outro a dionisíaca, inteiramente entregue à exaltação do instinto, espontânea. Uma acata as regras que corrigem a emoção, a outra é a emoção desrespeitando as regras. E é nesse ambiente dicotômico que o artista produz.
Quando ele configura algo e o define, surgem logo alternativas, vez que o processo criativo incorpora um princípio dialético, que se regenera por si mesmo - onde ampliar e delimitar são concomitantes, em aparente paradoxo de oposição em tensa unificação.
Não obstante, pouco importando como se desenrola o processo, e o que ali predomina, a construção de uma obra implica inexoravelmente em um desenvolvimento formal, consciente ou inconsciente, que contém seqüências rítmicas, proporções, distanciamentos, aproximações, indicações direcionais, tensões,velocidades, intervalos, pausas...
Se considerarmos nesse contexto, que o conteúdo expressivo da forma simbólica é resultante da correspondência entre desenvolvimento formal e qualidades vivenciais, a obra de arte, como mensagem simbólica, remete a modos de vida essenciais do artista, via das associações que perpassaram seu processo criativo e a estrutura formal adotada ao final. Donde se pode inferir como verdadeiro que: criar é combinar elementos conhecidos dando-lhes nova utilidade ou nova apresentação. Logo, quanto mais se combina mais se cria.

FRANZÉ

De tamanco ao Tamancão

Este texto começou a nascer na solenidade de inauguração do CVT Estaleiro-escola do Sítio Tamancão, e da Oficina de Modelismo Naval Kelvin Duarte, em 2007, em São Luiz, MA, onde  fui como convidada, participando da belíssima homenagem feita a meu pai, Kelvin de Palmer Rothier Duarte, colaborador do Projeto Embarcações do Maranhão, que acabou dando origem ao CVT Estaleiro-escola, onde agora estão suas coleções de ferramentas e peças náuticas.




 


Meu pai, modelista naval autodidata, tornou-se profundo conhecedor e estudioso de história da navegação e da vela, pesquisador das técnicas artesanais de construção de embarcações de madeira e incentivador de sua preservação no Brasil. Participou da pesquisa e elaboração de textos do livro Embarcações Típicas do Brasil, edição histórica do Estaleiro Caneco, editado em 1985 pela editora Index e foi consultor de alguns projetos importantes nesta área.

Dedicou a maior parte de sua vida a esses estudos, formando uma "senhora oficina"  e uma biblioteca especializada, com mais de 3.000 volumes,  utilizada por ele, seus discípulos e outros pesquisadores. Seus livros foram adquiridos pela Associação de Amigos do Museu e estão no Museu Nacional do Mar, em São Francisco do Sul, SC, na biblioteca que leva seu nome, homenagem pelo apoio e incentivo para a implantação daquele museu.  Seus arquivos pessoais, fotografias a ainda algumas peças feitas por ele foram doados pela família e pertencem também ao acervo da instituição







***



A paixão de Kelvin pelos barcos começou muito cedo. Aos 5 anos de idade, morando com os avós em Cabo Frio, construiu seu primeiro "modelo", cujo casco era um velho tamanco, encontrado nos arredores da Salina Trapiche de seu avô materno Carlos Palmer, influenciado, certamente, pelas tradicionais lanchas do sal que ancoravam no cais do Canal Itajuru, diante da casa da família.


Descendente de uma família de inventores - seu trisavô Jean Laurent Palmer inventou o micrômetro, instrumento de precisão utilizado para medir espessuras tais como as de folhas de papel, conhecido como micrômetro de Palmer que revolucionou a indústria; o tubo sem solda e o binóculo náutico, entre outras inovações que lhe valeram uma medalha de ouro da rainha Vitória. Seu bisavô, Léger Palmer veio para o Brasil trazendo uma máquina a vapor para um engenho de cana de açúcar em Campos. O navio naufragou, deixando a máquina no fundo do mar e um francês encantado pelo belíssimo litoral de Cabo Frio, onde acabou fixando residência. Foi ele o responsável pela abertura de diversos canais, entre eles o canal Palmer, melhorando a navegação e o comércio do sal na Lagoa de Araruama. Era dele a empresa de navegação a vapor da lagoa. O avô Carlos, também inventor, foi personalidade importante em Cabo Frio, onde Kelvin viveu parte de sua infância.

Ainda garoto, começou a construir modelos e pequenos veleiros para navegar na Lagoa Rodrigo de Freitas e na Baía da Guanabara.

O brinquedo do menino tornou-se hobby , "vício" e profissão.

Em sua pequena oficina no socavão de uma escada nasceram fragatas, brigues, naus e até canhões de aço torneado que atiravam de verdade, para o temor da vizinhança, que se assustava com os tiros de pólvora na área de serviço do apartamento térreo em Ipanema, RJ.

Quando a indústria onde trabalhava faliu, o que antes era hobby passou a ocupar tempo integral em sua vida. A oficina ganhou espaço nobre no apartamento da Gastão Bahiana, envolveu a família (minha mãe tingia o tecido e cosia as velas das embarcações. Eu fazia moitões, bigotas e outras pecinhas) e começou a produzir modelos para a única loja que na época se interessava pelo assunto - a Antoine, na praça Gal. Osório, em Ipanema e posteriormente para a AMC, no Shopping da Gávea, redutos de apaixonados pelo mar e pelos barcos, sempre veleiros.


Na década de 70, Kelvin descobriu nos porões do Museu Histórico Nacional a preciosa Coleção Alves Câmara de embarcações regionais brasileiras precisando ser salva dos cupins e da destruição iminente. Ofereceu-se para restaura-la e aos poucos foi sendo reconhecido pela qualidade de seu trabalho. Esta belíssima coleção foi a responsável pelo seu ingresso nos quadros do Museu Naval e Oceanográfico, alguns anos depois, como restaurador e especialista em assuntos náuticos.
Há hoje no Espaço Cultural da Marinha no RJ um painel fotográfico em sua homenagem na Sala Alves Câmara, dedicada às embarcações regionais brasileiras.

Anos depois, morando sozinho em um apartamento em Botafogo, o local, que em nada se parecia com uma casa de verdade, foi aos poucos se transformando em uma imensa oficina. Não havia sofá ou mesa de jantar, muito menos televisão, nem telefone, sequer campainha! Na sala ficavam as máquinas, o torno, a serra circular, a lixadeira, algumas feitas ou adaptadas por ele para o trabalho com peças minúsculas. Num dos quartos ficava a mesa de desenho com os conjuntos de plantas de centenas de veleiros de todas as épocas e o depósito de materiais - madeiras, tintas e vernizes, pincéis. No outro quarto a biblioteca e um minúsculo catre forrado com um tatame onde ele dormia, quase um asceta!

Mas a vida não era fácil. Pessoa sensível, enfrentava qualquer mar com bravura, mas suava frio ao ter que preencher um cheque ou lidar com a burocracia. Algumas vezes o ouvi afirmando "I'm not fit for life", sentindo-se deslocado e incapaz de se enquadrar nesse mundo. Partiu cedo desta vida, aos 65 anos, um tanto devastado pela depressão e pelo álcool, seu refúgio em muitos momentos de solidão. Muitos como ele enfrentam esse drama em nossa sociedade mais preparada para destruir e segregar do que acolher e solidariamente buscar saídas. Uma pena. E um alerta. É preciso repensar nossos valores. O que nos move, afinal? Para onde vamos? Para onde estamos nos deixando levar?


Há trabalhos de Kelvin em museus brasileiros e coleções particulares nacionais e estrangeiras.
No Museu Nacional, na quinta da Boa Vista, RJ, há um lindo saveiro de vela de pena e duas ou três canoas baianas  por ele restaurados.
No Museu do Farol da Barra, em Salvador, BA, além do iate Parahibano, há uma coleção de réplicas de instrumentos náuticos da época dos descobrimentos (astrolábio, quadrante de Davis, Prumo da Sondareza, entre outros) motivo de muitas madrugadas insones e de orgulho pelos resultados alcançados.






O Clube Naval no Rio de Janeiro, instituiu a Medalha Professor Kelvin para premiação do concurso de modelismo naval que ali acontece anualmente.

Suas histórias, palestras e conversas fascinantes encantaram e influenciaram amigos e alunos dos cursos de modelismo naval, promovidos pelo Museu Naval e Oceanográfico, onde passou a ser chamado de Professor Kelvin.

Desde pequena via meu pai fazendo modelos, réplicas perfeitas de veleiros antigos, que demoravam anos para ficarem prontas.
Enfrentei as primeiras ondas no mar de Ipanema enganchada em seus braços, o que me valeu alguns sustos e um grande amor pelo mar. Dormia escutando as aventuras de Long John Silver e Robinson Crusoé, meu herói e mentor nas artes da auto-suficiência.
Velejamos um bocado na baía de Guanabara, tão limpa naquele tempo que eu, aos três anos, mergulhava a chupeta no mar e na boca sem a repreensão de ninguém. Acampávamos em Jurubaíba, com direito a ovos mexidos na fogueira e ao marulhar das ondas a nos embalar o sono. Areia branca e fina, densa vegetação de mata atlântica, a ilha era um paraíso seguro e abençoado.
Órion, as Plêiades, Sírius e o Cruzeiro, tornaram-se tão íntimos que até hoje me orientam e situam, nas andanças pelo Brasil. Foi passeando com meu pai nas margens da lagoa Rodrigo de Freitas e na praia de Ipanema que aprendi a conhecer e reconhecer o céu e a amar os faróis. Foi com ele que aprendi a fazer e restaurar modelos, profissão que abracei por onze anos. A vida me fez buscar outros rumos, satisfazer a outros interesses, mas, de vez em quando não resisto e acabo pegando uma restauração.

Participei da primeira turma do Curso de Modelismo Naval aos 14 anos e de 1982 a 93 trabalhei profissionalmente como modelista e restauradora em seu atelier. Após seu falecimento, foi necessário desmontar a oficina e entregar o apartamento. Sem condições para guardar o acervo como ele merecia, fui obrigada a fazer contato com diversas instituições que pudessem adquiri-lo para que pudesse "botar o barco de volta ao rumo certo". Felizmente pude contar com o apoio do Museu Nacional do Mar, SC, que ficou com sua biblioteca e com o Estaleiro-escola, que ficou com suas coleções de ferramentas, poleame e ferragens de embarcações veleiras.

Ver suas peças em vitrines no espaço museológico do Estaleiro-escola mexeu demais comigo, pois utilizei a maioria delas por muitos anos. Lembro de ver meu pai chegando na oficina com "mais um achado", uma ferramenta incrível encontrada em algum brechó ou feira de antiguidades. Conheço de perto cada uma delas e sei que estão em boas mãos. Foi conversando com Luiz Phelipe Andrés, criador do Estaleiro-escola e do Projeto Embarcações do Maranhão que veio a constatação, diante daquelas peças, com os olhos ainda cheios de lágrimas, de que tudo começou com um tamanco velho...
Mal podia ele imaginar que suas peças iriam parar no Sítio Tamancão, em São Luis, MA. Essa vida é realmente surpreendente.



O conjunto de prédios do CVT Estaleiro-escola Sítio do Tamancão,
em São Luiz, Maranhão




Christianne Rothier
2009

sábado, 26 de setembro de 2009

Largo do Boticário - RJ

PERPLEXIDADE/INDIGNAÇÃO




Morando fora há algum tempo, voltei como turista no feriadão de 15 de novembro para matar a saudade da cidade (ainda e sempre) maravilhosa. Driblando o aguaceiro e o frio desta primavera, fomos ao zoológico, ao "Museu dos Ossos", que é como minha filha chama o Museu Nacional, e quase conseguimos ir ao Cristo, mas a chuva, que já tinha sido por demais condescendente, impediu nossa subida ao ameaçar desabar com toda força enquanto ainda estávamos na Rua Cosme Velho, ao lado do Largo do Boticário, onde nos refugiamos, buscando ecos do tempo em que moramos em Laranjeiras e muitas vezes íamos até lá pra ouvir o murmúrio do carioca, ainda Rio naquele trecho.

Deparamo-nos com uma faixa em uma das casas - Confederação dos Tamoios, etc - anunciando uma ocupação com apoio do movimento dos sem teto.

Sem entender o que se passava, fomos aos poucos nos dando conta da terrível situação deste lugar, patrimônio de nossa cidade, que abrigou o atelier de Augusto Rodrigues por tantos anos, reduto de artistas e intelectuais atuantes em tempos nem tão antigos assim.

Ficamos sabendo que a maioria das casas pertence a uma única família que, sem recursos após a morte da "velha", está deixando o tempo e o descaso dar cabo da herança, que, se não passar por urgente restauro, será em breve uma ruína, já que a natureza parece estar tomando de volta o que um dia lhe foi roubado, brotando em todas as frestas e abrindo caminho com poderosas raízes por todos os lados, deixando entrar a água da chuva que faz com que aqueles belos azulejos brancos e azuis comecem a se soltar e serem postos à venda juntamente com revistas velhas e outros tesouros do passado. Há pessoas por ali passando necessidade...

Nossa cidade já conhece os inúmeros benefícios de investir no resgate de nossa memória, de nossa História e cultura. Casarões de Botafogo, Flamengo,Lapa, Centro e tantos outros bairros foram restaurados, devolvidos à população, atraindo mais recursos, turistas, moradores e vizinhos que passam a freqüentar restaurantes charmosos, livrarias e centros culturais que dão vida nova aos bairros então revitalizados.

Como Carioca de corpo e alma deixo aqui um alerta, um pedido de socorro, para que alguém faça alguma coisa antes que aquelas casas desabem. Imagino que sejam tombadas pelo Patrimônio Histórico, se não são, deveriam imediatamente passar a ser. Onde estão os arquitetos e técnicos do IPHAN? O Largo do Boticário é um patrimônio da Cidade do Rio de Janeiro, dos Cariocas, do Brasil e dos milhares de turistas que certamente têm em seus álbuns de viagens este recanto precioso do Cosme Velho e do Brasil.


16/11/2006

Minhas Memórias e o Bob's

Há alguns anos, o Bob's fez uma promoção pedindo aos clientes que contassem suas experiências relacionadas à lanchonete que, então, aniversariava. Escrevi este texto e mandei. Fui selecionada. O "prêmio" foi a participação num vídeo institucional (que nunca vi) e um sundae (rsrsrs) de morango que degustei durante a filmagem. Disseram que haveria um prêmio especial, que nunca chegou! Mas foi divertido.


As lembranças mais gostosas que guardo dos anos 60, eram os passeios que fazíamos nas noites de verão, meu pai, minha mãe e eu, pelas ruas de Ipanema. Morávamos na Farme de Amoedo e algumas vezes íamos até o Bob's da Garcia D'Ávila pela praia, onde o cheiro da maresia se misturava ao cheiro da Dama da Noite, uma flor de perfume muito intenso e comum no bairro. São aromas impregnados em minha memória. Era uma boa caminhada para mim, com meus 5, 6 anos e quando a gente ia se aproximando, vinha no ar um cheiro delicioso que imediatamente a gente associava ao sanduíche de pão dourado e queijo derretido, que fazia fios imensos a cada mordida. A gente ria muito, enquanto se embaraçava e se deliciava. Meu pai tomava sorvete de pistache ou suco de laranja e eu, um sundae. Lembro da calda com morangos inteiros e do barulhinho "tloc" que fazia quando a gente mordia.

Aqueles passeios eram emocionantes e esperados com muita ansiedade.

Adolescente, algumas vezes, depois da aula de inglês no Oxford, gostava de ir ouvir as novidades na Garage, uma loja de discos da Garcia, ver as vitrines da Bibba e da Drugstore, ícones de uma Ipanema da década de 70. Na volta, a paradinha no Bob's era inevitável, onde gostava de tomar um Hot Fudge ou uma Vaca Preta.

Mudei de Ipanema para a fronteira entre Copacabana e Ipanema, no Corte do Cantagalo, mas não conseguia me ambientar no novo bairro. Até que um dia, um namorado me levou ao Bob's de Copa, que eu nem sabia que existia. Copacabana então entrou no mapa da minha vida.

Meus horizontes se ampliaram e já quase adulta, costumava ir ao Teatro João Caetano na Praça Tiradentes pra assistir ao Seis e Meia e na volta, era fundamental uma passada no Bob's da Senador Dantas pra saborear um Big Bob com refrigerante cheio de bloquinhos de gelo boiando no copo.

Em meados dos anos 80 o Edifício Avenida Central me proporcionava alguns prazeres: o sebo, a loja de modelismo e o Bob's, onde eu comia queijo com banana e bebia refresco de maracujá.

No final dos anos 90, minha filha, com 4 anos descobriu as delícias de uma casquinha de baunilha.

Hoje, em 2002, tomando um Ovomaltine, mergulho numa viagem ao passado, revivendo prazeres, sensações e emoções, instigada por este convite do Bob's. Crescemos juntos, a cidade, o Bob's e eu.

O Tempo e as Coisas

Nunca tive um relógio 100% confiável.

Às vezes, ele me diz que são 10 horas, mas na verdade já é quase meio dia! Outras vezes estando certa de que já são 6 da manhã me surpreendo. Ainda posso dormir quase duas horas.

Talvez  porque na minha casa o tempo seja outro, o da preguiça dos gatos ou da pressa dos beija-flores.

O relógio de pulso para. Passa um, dois dias inerte, imóvel e de repente, sem ter motivo aparente recomeça sua marcha por meses a fio. Até que, como se para me puxar o tapete e lembrar que tudo é efêmero, estanca. Inútil artefato no braço.

E as coisas, as coisas mesmo, os objetos, parecem ter vida própria e um ótimo senso de humor. Escondem-se. Passam anos assim, adormecidos. Mas quando preciso deles, vou lá, direto naquela gaveta, dentro daquele livro e pronto. Ele lá não está. E fico eu, revirando lembranças, tentando resgatar o último momento, mas, peraí, não foi aqui que guardei? Mas eu tinha certeza de que estava ali... E anos depois (ou dias, semanas) ele se mostra, parecendo que até com sorriso sarcástico, "to aqui", "estive aqui todo esse tempo”!

Nossa, olho o relógio, parece que foi há tanto tempo. Nossa, foi ainda ontem que olhei e não vi e lá se vai ele novamente, ser agulha no palheiro.



20/09/09
Desde pequena convivi com ferramentas e pessoas que usavam as mãos para criar e consertar coisas. Em minha casa sempre houve uma oficina com bancada, painéis e maletas de ferramentas de todos os tipos.


Minha mãe costurava, bordava, tecia, cozinhava. Com 5 anos aprendi a bordar, seguindo o risco de um ratinho desenhado por ela. Recortávamos flores dos anúncios do National Geographic Magazine e colávamos nos azulejos da cozinha; fazíamos biscoitinhos de nata e balas de açúcar no mármore da pia.

Muito cedo montei "minha" primeira caixinha de ferramentas com os pequenos martelos e alicates de meu pai, em uma caixa feita por ele. Ela também serviu para guardar roupinhas de boneca e material de pintura. Hoje guarda ferramentas.

Aquela oficina num socavão de escada era um pequeno estaleiro de onde saíam veleiros imponentes e também a estante de meus primeiros livros, o balanço com laterais de coelho no qual eu passava horas balançando no quintal. Meu primeiro estojo com tampa de correr também saiu de lá, além de uma magnífica caixa com subdivisões onde minha mãe professora guardava contas coloridas e materiais de texturas e pesos diferentes para usar com seus alunos. Alí também meu pai consertava coisas - liquidificador, tomadas, ferro elétrico.

Eu adorava mexer em tudo aquilo. Aos poucos fui me apoderando de miudezas, quinquilharias e objetos, que guardei por toda a vida, pensando que um dia eles serviriam pra alguma coisa.

Nos mudamos e a oficina teve momentos de decadência e glória. Um belo dia, me vi restaurando modelos de barcos, aprendendo as técnicas de construção. Por onze anos fui oficialmente modelista naval. (Posso dizer que sou dessas pessoas que sabe com quantos paus se faz uma canoa!).

Nesse percurso fui dominando os modos de trabalhar madeira, de usar ferramentas e máquinas e comecei a fazer móveis e objetos. Dei aulas de marcenaria para crianças e jovens e criei o Projeto Oficinas de Brinquedos e Engenhocas de Sucata, que já aconteceu em muitos lugares. O desejo de pensar as formas e os objetos me levou a estudar no Parque Lage. Aqueles "cacarecos" começaram a ganhar outro rumo. Alguns deles estão aqui.

Texto da exposição Objetos - Trilogia

(para ver os objetos visite a exposição em http://www.christiannerothier.com/objetostrilogia/index.htm )

Fragmentos de Memória

Aos 8, 9 anos, mais ou menos, eu já tinha algumas coleções. Maços de cigarros, caixas de fósforos. Chaveiros, moedas, selos. Fichas de ônibus.

Aos 10 ganhei de minha avó uma caixa linda cheia de vidrinhos compridos com miçangas de todas as cores. Aprendi com ela a fazer colares e a tecer braceletes.

Lembro das visitas esporádicas à casa dessa avó, em Niterói, que pacientemente abria uma a uma as gavetas de uma cômoda do quarto de costura e me mostrava caixas de sabonete e bombons finos onde ela guardava fitas de cetim e gurgurão perfeitamente enroladas e arrumadas. Caixas com botões e outros aviamentos, meticulosamente organizadas, enfileiradas nas gavetas que recendiam aos perfumes dos já inexistentes sabonetes causavam um grande fascínio. Um dia, anos mais tarde, com certa solenidade, numa daquelas visitas herdei algumas daquelas caixas, histórias e objetos que pertenceram ao bisavô, à bisavó, à tia avó, ao avô e à própria avó e que haviam sido cuidadosamente preservados a espera de um novo destino. Tomei posse daqueles tesouros, me sentindo especial pois, entre tantos primos, fui eu a escolhida. Não me sentia dona daquelas coisas, mas uma espécie de tutora ou curadora de uma memória que mais cedo ou mais tarde vai se esvaindo e da qual restam fragmentos que podem ir parar no fundo de outras gavetas ou, perdendo a função ganham destino diverso ao que fora projetado. O castão de prata da bengala que sustentou o peso dos passos de meu bisavô pelas calçadas de uma cidade distante, repousa imóvel numa mesa de mármore num canto da sala.

A família inteira acabou me escolhendo para herdeira de seus mais absurdos tesouros, que fui acumulando com um misto de prazer e orgulho, junto com pedras e conchas das praias por onde andei. Os amigos começaram a colaborar e quando dei por mim já colecionava postais, bilhetes, cartas. Também latas interessantes e caixinhas, miudezas.

Tudo isso eu guardava em outras caixas maiores, arrumadas como peças de um gigantesco quebra-cabeças, empilhadas milimetricamente dentro do armário. Garrafas com formas e cores interessantes se acumulavam numa prateleira do meu quarto. Material de desenho; lanternas e lamparinas, chaleiras de ferro e metal. Todas aquelas coisas guardei. Depois vieram as ferramentas. Um dia, serrei alguns caramujos ao meio e comecei a abrir as gavetas, as caixas. Passou algum tempo e então novamente abrindo as mesmas caixas, os objetos se mostrando de um outro modo ganharam significado diverso e agora se apresentam em outros suportes, tendo nova função. Tendo o privilégio de compartilhar com eles minha vida, um dia também eu terei ido embora. Também serei talvez uma bisavó de quem já não lembram bem o nome. Serei fragmento de memória, um nome sem rosto, algumas fotos desbotadas perdidas em outras gavetas, se restar algum futuro e memória.

Abrindo os baús e as caixas, exponho agora as entranhas, sutilezas, algumas lutas e muitas histórias. As histórias são muitas. Quem quiser, que monte a sua.

Texto da exposição Coleção de Coleções, in www.christiannerothier.com


Rio de Janeiro, agosto de 2001

ANDANÇAS

Tenho andado um bocado por esse "mundão véio sem porteira", com uma maleta de ferramentas de um lado, um balaio de livros do outro. Olhos atentos nas ruas, feiras e mercados desse Brasil, me ajudam a garimpar artesãos e seus brinquedos incríveis. Anos de estrada me deram a certeza de que brincadeira é coisa muito séria e que fazer brinquedos é uma grande viagem.

Foi lá pelo finzinho dos anos 80 que comecei a pensar na oficina de brinquedos. Na verdade, eu queria mudar de rumo, depois de 11 anos construindo e restaurando maquetes navais. Toda aquela experiência com ferramentas e madeiras não podia se perder. Mas, o que fazer? Por incrível que possa parecer, foi sentada dentro de um ônibus parado num sinal, olhando uma chave gigante que girava sobre a tabuleta - Chaves na Hora - que a idéia "explodiu" em minha cabeça: Brinquedos! Vou fazer brinquedos!! Naquele instante, mágico, uma sensação incrível tomou conta de mim.

Aos poucos fui descobrindo revistas e livros sobre brinquedos de madeira. Ao mesmo tempo outra idéia foi tomando corpo: promover oficinas de brinquedos para crianças. Porque não? Montei um programa e fui conversar com o pessoal da Criarte - uma escola de arte no Humaitá onde anos antes eu tinha feito um curso. Álvaro Ottoni e Ângela Macedo me receberam de portas e corações abertos. Me deram uma sala e lá montei minha primeira oficina. Junto com Claudia Santos, fizemos um esquema de divulgação, que me levou ao programa Sem Censura na TVE.

Após a entrevista, uma surpresa: Marina Quintanilha Martinez, minha professora de literatura infantil no Ciae da Escolinha de Arte do Brasil assistiu e me ligou com um convite para conhecer sua Biblioteca Infantil Manoel Lino Costa, no Centro do Rio. Reencontrar a Marina seria ótimo, mas o que eu poderia fazer numa biblioteca? Vieram as lembranças das bibliotecas da minha vida. A do colégio de freiras, onde era preciso entrar em silêncio, com as mãos para trás, sentar no lugar marcado e folhear o livro que já estava sobre a mesa. A do ginásio, onde o inspetor vigiava escondido entre as prateleiras. A vontade de sair correndo dali era irresistível! Assim me preparei para visitar a BIMLIC.

O endereço também não era dos mais convidativos. Uma sala num dispensário de freiras na Rua Mem de Sá, área bastante degradada da cidade. Mas foi abrir a porta pra mergulhar de cabeça num lugar mágico e especial, que só uma pessoa como a Marina poderia ter inventado. Era um Espaço Vivo, com livros, crianças, idéias e pessoas sérias e muito envolvidas com o que faziam. Foi um caso de amor à primeira vista. Saí de lá empolgada e na semana seguinte comecei a trabalhar. Fui conhecendo as crianças, levando livros pra casa. Abrimos inscrições para a Oficina de Brinquedos, a princípio uma tarde por semana durante dois meses. Quem faltasse duas vezes seguidas, perdia a vez, pois havia uma grande fila de espera. Foi uma das experiências mais marcantes de minha vida.

Robson, Alex, Diogo, Mark, Ednilson, Wendel, Leidiane, Rafael, Ulisses, Vinícius, Andreza, Marcelo, Fabinho, Paulo e tantos outros! Juntos montamos a oficina, que, ao longo de dois anos produziu brinquedos maravilhosos. Relendo os diários de bordo daquela época, me surpreendo com a lembrança do primeiro dia da oficina, quando conversamos sobre lixo, sucata, desperdício e partimos pra organização do material. Ficou registrada a grande dificuldade das crianças pra simplesmente forrar com papel colorido as caixas de papelão! Com o tempo eles foram dominando tesoura e régua, além de serrote, alicate, martelo, furadeira. Tínhamos nossa própria seção de livros, que no início eram bastante consultados, servindo de ponto de partida. Alguns projetos da biblioteca - Mitologia: O Labirinto de Creta, Contos de fadas: Castelos - acabaram se tornando projetos de longo curso da Oficina. O inverso também ocorreu: a partir da história A Casinha, contada por Helena Jacobina e da idéia de fazer maquetes, surgiu A Lapa vista pelas crianças - um projeto de ecologia urbana, que envolveu todos nós durante alguns meses, produzindo um trabalho muito bom, registrado em vídeo por Paula Saldanha e Roberto Werneck e apresentado no Museu do Telefone.

Em 92, encerrado o contrato de comodato com a instituição, a Biblioteca fechou suas portas. Durante outros dois anos tentamos, em vão, encontrar novo espaço para ela. Hoje o acervo de uns 5.000 livros está em boas mãos, no Sítio Santa Clara. De lá pra cá, muitas águas rolaram, muitas oficinas aconteceram, para crianças e adultos, em instituições de ensino formal e informal, no Rio de Janeiro e em outros estados. Mas é com especial emoção e carinho que penso naquele tempo, onde tanto aprendi com aquelas crianças. Foi uma Escola e tanto, uma "plataforma de vôo", como diz Marina. Até hoje somos parceiras em projetos de arte e leitura, além de comadres. Minha filha Lara, hoje com 6 anos, não poderia ter melhor madrinha!



Setembro de 2001

Texto da exposição Galeria de Brinquedos Populares
A MÁGICA


Sempre acreditei na "mágica", na capacidade de interferir com nossa vontade e desejo e fazer acontecer o que me acostumei a chamar de "milagres", a materialização de objetos a partir de um desejo profundo, sincero e "desprendido". Uma boa imagem é a do trecho da música "era só jogar a rede e puxar, era só jogar a rede e puxar..."
Tenho inúmeros exemplos de coisas nessa linha:

Com 13, 14 anos, num momento de crise na família, meu pai desempregado, sem dinheiro nem perspectivas, prestações do apartamento vencendo, recolhemos todo o dinheiro que havia em casa - algumas moedas que davam exatamente para duas passagens de ônibus - e a família decidiu que eu iria usa-las para ir para a escola. Saí de casa e ao chegar na rampa do edifício, um tanto desolada aquela hora da manhã, vejo caindo na minha frente, em "câmera lenta", rodopiando levemente, uma nota de 100. Aquela nota avermelhada, a de maior valor naquele tempo. Veio caindo suavemente e pousou sobre meus pés e meu olhar perplexo, que imediatamente se dirigiu para o alto, buscando ver braços acenando em alguma janela daquele prédio de 20 andares, aquela torre da Gastão Bahiana. Tudo que vi foi o céu azul, um claro azul de um dia começando. Ninguém, viva alma!
Agarrei aquela nota e com o coração disparado tomei o elevador até a portaria e o outro, que demorou uma eternidade até chegar ao 19º andar. Esmurrei a porta e ninguém poderia imaginar o acontecido atrás dela, nós três pulando abraçados, o almoço garantido por alguns dias, uma festa.

Eu costumava fazer meditação em meu quarto, naquele 19º andar no Corte do Cantagalo, em Copacabana. De pernas cruzadas, tentava não pensar em nada enquanto repetia um mantra e esperava que os pensamentos indesejáveis, como nuvens, chegassem e partissem. Lá pelas tantas, me veio a vontade de saber os filmes em cartaz no cinema. Como por encanto, uma folha de jornal, pra ser bem específica, a página de cinema do Caderno B do Jornal do Brasil entrou voando pela janela, como um imenso pássaro batendo suas asas e caiu na minha frente. Meninos, eu vi! Parece mentira, não é? Pois é, mas não é não...

Tem mais! Eu estava fazendo uns caleidoscópios para a criançada de uma biblioteca infantil onde eu orientava uma oficina de brinquedos. Precisava de réguas de espelho que coubessem dentro dos tubos de papelão que nós já tínhamos. Fui numa vidraçaria, mas ficava caro e a idéia era gastar o mínimo, de preferência, nada. La ia eu andando pela Rua Miguel Lemos pensando nos espelhos, quando me deparo com uma pilha de réguas de espelho junto a uma árvore, na frente de uma pequena galeria onde havia o Teatro Brigitte Blair e uma boite no subsolo, que, em reforma, estava trocando o revestimento espelhado das colunas! Meus espelhos estavam junto com alguns sacos de entulho. Foi só me abaixar, pegar e usar. Não precisou nem um corte!

E ainda não acabou! Sou do tempo em que os computadores da PUC RJ, onde eu estudava, eram alimentados com dados em cartões perfurados por um digitador. Eram retângulos de cartão que ficavam cheios de furos igualmente retangulares. Depois de utilizados, eram descartados. Com essa minha mania de transformar tudo e fazer coisas, andei fazendo luminárias incríveis que lembravam muito os lustres árabes, deixando passar a luz pelos orifícios vazados, dando uma luz muito agradável e suave no ambiente.  Anos depois, estudando escultura no Parque Lage, lembrei daqueles cartões e fiquei imaginando onde consegui-los depois de tantos anos, numa era onde os computadores de outra geração não usavam mais os tais cartões.
Pois bem, saio de casa para ir ao supermercado, numa ensolarada manhã de meio de semana. Ao voltar, com as sacolas nas mãos, me deparo com a Rua Miguel Lemos, no trecho entre a R. Barata Ribeiro e a Praça Eugênio Jardim coalhada, literalmente coalhada de cartões de computador. As duas calçadas e o asfalto. Montanhas de cartões, pilhas deles por todos os lados. Ninguém soube me explicar como aquilo aconteceu. Foi só me abaixar, pegar aqueles bolos de cartões e levar pra casa. "Era só jogar a rede e puxar, era só jogar a rede e puxar..."

Outra vez foi a nossa árvore, como costumávamos chamá-la, que pegou fogo. Ela ficava no alto do morro defronte ao nosso prédio, e aquela árvore, a única que havia sobrado, ficava quase na altura da nossa janela. Era linda, talvez por ser única. Uma Figueira Brava. Um dia a vimos em chamas. O céu da tarde estava claro, límpido, sem nuvens, mas ficamos, minha mãe e eu na janela, chamando a chuva. Nossa árvore não podia morrer. Ao anoitecer desabou um pé d'água que durou o tempo necessário para apagar o fogo. Nossa árvore sobreviveu chamuscada, mas tempos depois brotou e se encheu de novas folhas. Até o próximo fogo, que dessa vez a levou. Não estávamos em casa...

Uma noite, vi a lua cheia saindo do mar. Um espetáculo, uma cena deslumbrante. (De minha janela eu via o mar por cima de Copacabana, o mar, o Pão de Açúcar e algumas praias de Niterói, do outro lado da baía de Guanabara. Era muito alto o meu "poleiro" no morro do Cantagalo.)
No mar aquele rastro de prata cintilava e um veleiro deslizava sua paz. As luzes da cidade tremeluziam e pensei com meus botões que se as luzes se apagassem seria o máximo. E o que aconteceu? Copacabana ficou às escuras, breu total por uma meia hora, o tempo de a lua subir e do barquinho desaparecer no horizonte.

Um belo dia fomos nós três à praia, com a idéia de dar um mergulho e voltar logo. Não levamos documento, dinheiro, nada. A praia estava tão gostosa que fomos ficando. Pegamos uma trilha no morro do canto da praia do Peró e lá pelas tantas, a fome apertou. Pensei, puxa, podia ter trazido uma grana pra comer alguma coisa... Não andei nem um metro sobre as pedras e me deparei com uma linda nota de R$5,00, esticadinha na minha frente e ninguém nas proximidades. Chegamos novamente à praia e logo passou um vendedor de empadas , com as três últimas empadas em sua caixa! E deu pra segurar a fome até chegar em casa.

Não é só isso não... Tem muito mais. Algumas coisas menos significantes, nem tão impressionantes, mas suficientes pra me mostrar que isso é possível, que o nosso desejo é capaz de materializar a coisa desejada. Eu não sabia como fazer isso, como controlar, mas tinha provas mais do que concretas de que, em alguns momentos a "mágica" acontece. É pensar numa pessoa que a gente não vê há muito tempo e encontrar com ela na rua e outras coisas por aí.
Portanto, sou dessas pessoas que não pode dizer que "dinheiro não cai do céu", pelo contrário, cai sim, mas não é sempre. E a gente não pode estar desesperado, tem que estar tranqüilo e lançar o desejo no universo. De alguma forma, a sincronicidade acontece e o desejo e o objeto desejado se encontram. Agora eu aprendi que existe uma lei, a Lei da Atração que explica tudo isso. É um pouco como a Gravidade, que a gente não vê mas que puxa tudo pra baixo ou a eletricidade, que não precisa explicação, só saber como usar.
Acordei com o barulho da moto-serra. Já acostumada ao silêncio, ao canto dos pássaros e, no máximo, aos latidos e ao ruído de um ou outro carro de vez em quando, me assustei e fui pra janela. No terreno ao lado, caminhões despejavam areia e um frio correu pela espinha. Saí de casa e me deparei com a cena que tanto temi: homens equilibrando-se no alto da imensa árvore centenária, em fração de minutos punham abaixo o que a natureza levou décadas construindo. Indagando o que se passava, ouvi a assombrosa informação de que aquele tronco serviria para fazer mesinhas para o novo condomínio que há de ser erguido. Tentei argumentar que a "nossa" árvore não podia ser derrubada assim, como um inimigo no campo de batalha, desarmado e  sem chance de se defender.
Toquei o sino da casa do vizinho mais próximo, buscando reforço na tentativa de salvar aquele gigante que há poucos meses ostentava vasta cabeleira vermelha, abrigando aves migratórias em bandos barulhentos.
Enquanto tentava pensar rápido no que fazer, lamentei não ter feito as fotos que planejara, acreditando que ela ali ficaria pra sempre... Lembrei de todas as vezes que olhei pra ela, encantada com suas flores vermelhas, sua copa imensa contra o azul do céu. Ela ficava no terreno ao lado e cada vez que meus olhos davam com ela eu esquecia da propriedade privada, da sandice humana e pensava em todos os vendavais que ela suportou, em todas as estações em que ela perdeu as folhas, se encheu de sementes, os novos brotos, as flores e as gerações de pássaros que ali descansaram, fizeram seus ninhos.
Contra a velocidade de uma moto-serra não há o que fazer. O tempo se esvaiu enquanto eu tentava descobrir, pelo 102 da Telemar, o telefone do IBAMA de Cabo Frio - não consta; da secretaria do meio ambiente - não consta. Fui lembrando de amigos que poderiam saber como se salva uma árvore - número ocupado, secretária eletrônica, chama e não atende (era sábado de manhã, em pleno feriadão) Acabei conseguindo falar com o secretário de meio ambiente, que, lamentando, disse não ser possível fazer nada, posto que a árvore estava dentro da propriedade de alguém. O vizinho do sino me chamou à porta para dizer ter conseguido chamar a polícia marítima e ambiental, que estaria a caminho. Enquanto falávamos, tombou o último pedaço visível da árvore.
Agora olho para aquele pedaço de céu onde a não-árvore parece ainda sacudir seus ramos.
Foi-se o último gigante do Caminho Verde. Em seu lugar há de ser levantado em tempo recorde mais um condomínio-pombal a se encher de churrasqueiras e caipirinhas no próximo verão - ah - e com mesinhas rústicas de toros de madeira.


Cabo Frio,  31 de outubro de 2004
A semente lançada ao vento
Não sabe onde irá pousar.
Se em terra fértil, então de promessa
e possibilidade passará a ser,
a existir em nova condição de planta a florescer
e produzir novas sementes
que serão lançadas ao vento...
Pode, flutuando no ar
Como pluma
simplesmente encantar alguém
que por instantes
esquecerá de tudo acompanhando
aquela errante trajetória
Sua missão terá sido maravilhar alguém
que terá talvez pensado na simplicidade
da fugaz existência de tudo
Nisso residirá sua grandeza -
lembrar-nos da fugacidade da vida
e da premente necessidade de sermos plenos,
intensos, inteiros naquilo que fazemos.
Lágrimas brotam e secam,
sofrimentos cessam
e tudo,
o tempo todo se transforma
e morre
e renasce

30/03/2005




Calcei minhas botas de borracha, peguei facão e ancinho e saí de casa. Cortei galhos, mato, as folhas rasgadas dos buritis. Juntei milhares de folhas secas de amendoeira, varri, fiz grandes montes marrons. Observei admirada como cresceram as árvores que plantei um ano atrás no jardim da Av. dos Espadartes. Já floriram, deram sementes.
Ontem foi 23 de setembro e me dei conta de que esta foi a minha maneira de homenagear a primavera, de festejar a renovação, preparando pra essa chuva que agora cai.
Voltei pra casa feliz, apesar da bolha na mão, feliz pela alegria de botar as mãos na terra, de poder plantar, ver crescer, cuidar.
A égua Estrela e sua cria Lua me seguiam todo o tempo, me cutucando com o focinho, querendo um afago, um chamego. Parece incrível, mas pude sentir o que é ter a amizade de um animal de tão grande porte, com tanta força e doçura.  Algumas dezenas de passarinhos animaram meu trabalho.
De longe pude ver meu cachorro abanando o rabo, feliz com a minha volta pra casa.
A primavera chegou!

24/09/2006


Amigos, a vida tem dessas coisas... Quando a gente menos imagina, o vento muda, a gente toma novos rumos, o céu clareia, a lua aparece, o céu se enche de estrelas, os passarinhos cantam, a vida volta a ser uma festa!

Eu não poderia imaginar que estaria morando em Cabo Frio, com tudo o que isso significa...
Mas é aqui que estou, e muito feliz da vida, pensando cá com meus botões: Como é que não pensei nisso antes!!!!!

Pois bem, tem uma pilha de colchonetes à disposição pra quem tiver a fim de curtir praia, céu estrelado, passarinho (E MOSQUITO, QUE NADA É PERFEITO!) de montão. O inverno já chegou por aqui. Tem feito muito frio à noite. De dia, no sol, fica gostoso. Mas andou chovendo muito.

De manhã, é assim, primeiro tem uma espécie de hora das libélulas, atrás delas vêm as andorinhas e logo em seguida os gaviões. (a vida é dura, em qualquer parte!). Bem-te-vis, viuvinhas e pardais tem o tempo todo. Cambaxirra também. Guaiamu sai do canal e vem passear no meu quintal. A roupa seca na corda, ao vento. De noite, coruja passa o tempo no meu portão. Cavalos pastam aqui na frente. Temos um cachorro, o Fragmer (Lara deu o nome), um filhotinho lindo, vira-lata autêntico, pretinho de "sapatos" brancos, peito branco. Tem 2 meses e a mãe dele, a Branquinha, nos adotou e vem até aqui pra ganhar afago, água e comida também. Os dois brincam muito e depois ela vai embora.

O vento trás cheiros diversos: mato queimado, mar...

Pra ir pra cidade posso esperar o ônibus Peró da Salineira, ir de bicicleta ou atravessar o canal num barquinho, pagando R$1,50.

Já estou aceitando reservas! A casa e principalmente o coração estão abertos pra compartilhar essa novidade com direito a churrasco, cantoria, fogueira, banho de mangueira, praias limpas e lindas, caminhadas, bicicletadas e o que mais a imaginação sugerir!!!

Sejam bem vindos!!



Esse é o Fragmer!