sábado, 26 de setembro de 2009

Fragmentos de Memória

Aos 8, 9 anos, mais ou menos, eu já tinha algumas coleções. Maços de cigarros, caixas de fósforos. Chaveiros, moedas, selos. Fichas de ônibus.

Aos 10 ganhei de minha avó uma caixa linda cheia de vidrinhos compridos com miçangas de todas as cores. Aprendi com ela a fazer colares e a tecer braceletes.

Lembro das visitas esporádicas à casa dessa avó, em Niterói, que pacientemente abria uma a uma as gavetas de uma cômoda do quarto de costura e me mostrava caixas de sabonete e bombons finos onde ela guardava fitas de cetim e gurgurão perfeitamente enroladas e arrumadas. Caixas com botões e outros aviamentos, meticulosamente organizadas, enfileiradas nas gavetas que recendiam aos perfumes dos já inexistentes sabonetes causavam um grande fascínio. Um dia, anos mais tarde, com certa solenidade, numa daquelas visitas herdei algumas daquelas caixas, histórias e objetos que pertenceram ao bisavô, à bisavó, à tia avó, ao avô e à própria avó e que haviam sido cuidadosamente preservados a espera de um novo destino. Tomei posse daqueles tesouros, me sentindo especial pois, entre tantos primos, fui eu a escolhida. Não me sentia dona daquelas coisas, mas uma espécie de tutora ou curadora de uma memória que mais cedo ou mais tarde vai se esvaindo e da qual restam fragmentos que podem ir parar no fundo de outras gavetas ou, perdendo a função ganham destino diverso ao que fora projetado. O castão de prata da bengala que sustentou o peso dos passos de meu bisavô pelas calçadas de uma cidade distante, repousa imóvel numa mesa de mármore num canto da sala.

A família inteira acabou me escolhendo para herdeira de seus mais absurdos tesouros, que fui acumulando com um misto de prazer e orgulho, junto com pedras e conchas das praias por onde andei. Os amigos começaram a colaborar e quando dei por mim já colecionava postais, bilhetes, cartas. Também latas interessantes e caixinhas, miudezas.

Tudo isso eu guardava em outras caixas maiores, arrumadas como peças de um gigantesco quebra-cabeças, empilhadas milimetricamente dentro do armário. Garrafas com formas e cores interessantes se acumulavam numa prateleira do meu quarto. Material de desenho; lanternas e lamparinas, chaleiras de ferro e metal. Todas aquelas coisas guardei. Depois vieram as ferramentas. Um dia, serrei alguns caramujos ao meio e comecei a abrir as gavetas, as caixas. Passou algum tempo e então novamente abrindo as mesmas caixas, os objetos se mostrando de um outro modo ganharam significado diverso e agora se apresentam em outros suportes, tendo nova função. Tendo o privilégio de compartilhar com eles minha vida, um dia também eu terei ido embora. Também serei talvez uma bisavó de quem já não lembram bem o nome. Serei fragmento de memória, um nome sem rosto, algumas fotos desbotadas perdidas em outras gavetas, se restar algum futuro e memória.

Abrindo os baús e as caixas, exponho agora as entranhas, sutilezas, algumas lutas e muitas histórias. As histórias são muitas. Quem quiser, que monte a sua.

Texto da exposição Coleção de Coleções, in www.christiannerothier.com


Rio de Janeiro, agosto de 2001

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