quarta-feira, 4 de novembro de 2009

CRIAR

O texto abaixo foi escrito pelo amigo Franzé, um artista fabuloso, criador de peças fantásticas, que em breve terei a satisfação de mostrar aqui. Franzé foi amigo de meu pai e me "descobriu" em Cabo Frio. Por incrível que pareça somos vizinhos e não sabíamos.
 

No trato do processo criativo, mormente nas chamadas artes visuais, duas posições predominam: de um lado a apolínea, regida pelo desejo de ordem, clareza, harmonia e de outro a dionisíaca, inteiramente entregue à exaltação do instinto, espontânea. Uma acata as regras que corrigem a emoção, a outra é a emoção desrespeitando as regras. E é nesse ambiente dicotômico que o artista produz.
Quando ele configura algo e o define, surgem logo alternativas, vez que o processo criativo incorpora um princípio dialético, que se regenera por si mesmo - onde ampliar e delimitar são concomitantes, em aparente paradoxo de oposição em tensa unificação.
Não obstante, pouco importando como se desenrola o processo, e o que ali predomina, a construção de uma obra implica inexoravelmente em um desenvolvimento formal, consciente ou inconsciente, que contém seqüências rítmicas, proporções, distanciamentos, aproximações, indicações direcionais, tensões,velocidades, intervalos, pausas...
Se considerarmos nesse contexto, que o conteúdo expressivo da forma simbólica é resultante da correspondência entre desenvolvimento formal e qualidades vivenciais, a obra de arte, como mensagem simbólica, remete a modos de vida essenciais do artista, via das associações que perpassaram seu processo criativo e a estrutura formal adotada ao final. Donde se pode inferir como verdadeiro que: criar é combinar elementos conhecidos dando-lhes nova utilidade ou nova apresentação. Logo, quanto mais se combina mais se cria.

FRANZÉ

De tamanco ao Tamancão

Este texto começou a nascer na solenidade de inauguração do CVT Estaleiro-escola do Sítio Tamancão, e da Oficina de Modelismo Naval Kelvin Duarte, em 2007, em São Luiz, MA, onde  fui como convidada, participando da belíssima homenagem feita a meu pai, Kelvin de Palmer Rothier Duarte, colaborador do Projeto Embarcações do Maranhão, que acabou dando origem ao CVT Estaleiro-escola, onde agora estão suas coleções de ferramentas e peças náuticas.




 


Meu pai, modelista naval autodidata, tornou-se profundo conhecedor e estudioso de história da navegação e da vela, pesquisador das técnicas artesanais de construção de embarcações de madeira e incentivador de sua preservação no Brasil. Participou da pesquisa e elaboração de textos do livro Embarcações Típicas do Brasil, edição histórica do Estaleiro Caneco, editado em 1985 pela editora Index e foi consultor de alguns projetos importantes nesta área.

Dedicou a maior parte de sua vida a esses estudos, formando uma "senhora oficina"  e uma biblioteca especializada, com mais de 3.000 volumes,  utilizada por ele, seus discípulos e outros pesquisadores. Seus livros foram adquiridos pela Associação de Amigos do Museu e estão no Museu Nacional do Mar, em São Francisco do Sul, SC, na biblioteca que leva seu nome, homenagem pelo apoio e incentivo para a implantação daquele museu.  Seus arquivos pessoais, fotografias a ainda algumas peças feitas por ele foram doados pela família e pertencem também ao acervo da instituição







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A paixão de Kelvin pelos barcos começou muito cedo. Aos 5 anos de idade, morando com os avós em Cabo Frio, construiu seu primeiro "modelo", cujo casco era um velho tamanco, encontrado nos arredores da Salina Trapiche de seu avô materno Carlos Palmer, influenciado, certamente, pelas tradicionais lanchas do sal que ancoravam no cais do Canal Itajuru, diante da casa da família.


Descendente de uma família de inventores - seu trisavô Jean Laurent Palmer inventou o micrômetro, instrumento de precisão utilizado para medir espessuras tais como as de folhas de papel, conhecido como micrômetro de Palmer que revolucionou a indústria; o tubo sem solda e o binóculo náutico, entre outras inovações que lhe valeram uma medalha de ouro da rainha Vitória. Seu bisavô, Léger Palmer veio para o Brasil trazendo uma máquina a vapor para um engenho de cana de açúcar em Campos. O navio naufragou, deixando a máquina no fundo do mar e um francês encantado pelo belíssimo litoral de Cabo Frio, onde acabou fixando residência. Foi ele o responsável pela abertura de diversos canais, entre eles o canal Palmer, melhorando a navegação e o comércio do sal na Lagoa de Araruama. Era dele a empresa de navegação a vapor da lagoa. O avô Carlos, também inventor, foi personalidade importante em Cabo Frio, onde Kelvin viveu parte de sua infância.

Ainda garoto, começou a construir modelos e pequenos veleiros para navegar na Lagoa Rodrigo de Freitas e na Baía da Guanabara.

O brinquedo do menino tornou-se hobby , "vício" e profissão.

Em sua pequena oficina no socavão de uma escada nasceram fragatas, brigues, naus e até canhões de aço torneado que atiravam de verdade, para o temor da vizinhança, que se assustava com os tiros de pólvora na área de serviço do apartamento térreo em Ipanema, RJ.

Quando a indústria onde trabalhava faliu, o que antes era hobby passou a ocupar tempo integral em sua vida. A oficina ganhou espaço nobre no apartamento da Gastão Bahiana, envolveu a família (minha mãe tingia o tecido e cosia as velas das embarcações. Eu fazia moitões, bigotas e outras pecinhas) e começou a produzir modelos para a única loja que na época se interessava pelo assunto - a Antoine, na praça Gal. Osório, em Ipanema e posteriormente para a AMC, no Shopping da Gávea, redutos de apaixonados pelo mar e pelos barcos, sempre veleiros.


Na década de 70, Kelvin descobriu nos porões do Museu Histórico Nacional a preciosa Coleção Alves Câmara de embarcações regionais brasileiras precisando ser salva dos cupins e da destruição iminente. Ofereceu-se para restaura-la e aos poucos foi sendo reconhecido pela qualidade de seu trabalho. Esta belíssima coleção foi a responsável pelo seu ingresso nos quadros do Museu Naval e Oceanográfico, alguns anos depois, como restaurador e especialista em assuntos náuticos.
Há hoje no Espaço Cultural da Marinha no RJ um painel fotográfico em sua homenagem na Sala Alves Câmara, dedicada às embarcações regionais brasileiras.

Anos depois, morando sozinho em um apartamento em Botafogo, o local, que em nada se parecia com uma casa de verdade, foi aos poucos se transformando em uma imensa oficina. Não havia sofá ou mesa de jantar, muito menos televisão, nem telefone, sequer campainha! Na sala ficavam as máquinas, o torno, a serra circular, a lixadeira, algumas feitas ou adaptadas por ele para o trabalho com peças minúsculas. Num dos quartos ficava a mesa de desenho com os conjuntos de plantas de centenas de veleiros de todas as épocas e o depósito de materiais - madeiras, tintas e vernizes, pincéis. No outro quarto a biblioteca e um minúsculo catre forrado com um tatame onde ele dormia, quase um asceta!

Mas a vida não era fácil. Pessoa sensível, enfrentava qualquer mar com bravura, mas suava frio ao ter que preencher um cheque ou lidar com a burocracia. Algumas vezes o ouvi afirmando "I'm not fit for life", sentindo-se deslocado e incapaz de se enquadrar nesse mundo. Partiu cedo desta vida, aos 65 anos, um tanto devastado pela depressão e pelo álcool, seu refúgio em muitos momentos de solidão. Muitos como ele enfrentam esse drama em nossa sociedade mais preparada para destruir e segregar do que acolher e solidariamente buscar saídas. Uma pena. E um alerta. É preciso repensar nossos valores. O que nos move, afinal? Para onde vamos? Para onde estamos nos deixando levar?


Há trabalhos de Kelvin em museus brasileiros e coleções particulares nacionais e estrangeiras.
No Museu Nacional, na quinta da Boa Vista, RJ, há um lindo saveiro de vela de pena e duas ou três canoas baianas  por ele restaurados.
No Museu do Farol da Barra, em Salvador, BA, além do iate Parahibano, há uma coleção de réplicas de instrumentos náuticos da época dos descobrimentos (astrolábio, quadrante de Davis, Prumo da Sondareza, entre outros) motivo de muitas madrugadas insones e de orgulho pelos resultados alcançados.






O Clube Naval no Rio de Janeiro, instituiu a Medalha Professor Kelvin para premiação do concurso de modelismo naval que ali acontece anualmente.

Suas histórias, palestras e conversas fascinantes encantaram e influenciaram amigos e alunos dos cursos de modelismo naval, promovidos pelo Museu Naval e Oceanográfico, onde passou a ser chamado de Professor Kelvin.

Desde pequena via meu pai fazendo modelos, réplicas perfeitas de veleiros antigos, que demoravam anos para ficarem prontas.
Enfrentei as primeiras ondas no mar de Ipanema enganchada em seus braços, o que me valeu alguns sustos e um grande amor pelo mar. Dormia escutando as aventuras de Long John Silver e Robinson Crusoé, meu herói e mentor nas artes da auto-suficiência.
Velejamos um bocado na baía de Guanabara, tão limpa naquele tempo que eu, aos três anos, mergulhava a chupeta no mar e na boca sem a repreensão de ninguém. Acampávamos em Jurubaíba, com direito a ovos mexidos na fogueira e ao marulhar das ondas a nos embalar o sono. Areia branca e fina, densa vegetação de mata atlântica, a ilha era um paraíso seguro e abençoado.
Órion, as Plêiades, Sírius e o Cruzeiro, tornaram-se tão íntimos que até hoje me orientam e situam, nas andanças pelo Brasil. Foi passeando com meu pai nas margens da lagoa Rodrigo de Freitas e na praia de Ipanema que aprendi a conhecer e reconhecer o céu e a amar os faróis. Foi com ele que aprendi a fazer e restaurar modelos, profissão que abracei por onze anos. A vida me fez buscar outros rumos, satisfazer a outros interesses, mas, de vez em quando não resisto e acabo pegando uma restauração.

Participei da primeira turma do Curso de Modelismo Naval aos 14 anos e de 1982 a 93 trabalhei profissionalmente como modelista e restauradora em seu atelier. Após seu falecimento, foi necessário desmontar a oficina e entregar o apartamento. Sem condições para guardar o acervo como ele merecia, fui obrigada a fazer contato com diversas instituições que pudessem adquiri-lo para que pudesse "botar o barco de volta ao rumo certo". Felizmente pude contar com o apoio do Museu Nacional do Mar, SC, que ficou com sua biblioteca e com o Estaleiro-escola, que ficou com suas coleções de ferramentas, poleame e ferragens de embarcações veleiras.

Ver suas peças em vitrines no espaço museológico do Estaleiro-escola mexeu demais comigo, pois utilizei a maioria delas por muitos anos. Lembro de ver meu pai chegando na oficina com "mais um achado", uma ferramenta incrível encontrada em algum brechó ou feira de antiguidades. Conheço de perto cada uma delas e sei que estão em boas mãos. Foi conversando com Luiz Phelipe Andrés, criador do Estaleiro-escola e do Projeto Embarcações do Maranhão que veio a constatação, diante daquelas peças, com os olhos ainda cheios de lágrimas, de que tudo começou com um tamanco velho...
Mal podia ele imaginar que suas peças iriam parar no Sítio Tamancão, em São Luis, MA. Essa vida é realmente surpreendente.



O conjunto de prédios do CVT Estaleiro-escola Sítio do Tamancão,
em São Luiz, Maranhão




Christianne Rothier
2009